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Começo com uma pergunta bem simples: o que é um inimigo? Fiz essa pergunta para várias pessoas. A primeira pessoa para quem perguntei foi para Maria, minha filha, que está em quarentena comigo. Após ler as várias respostas escolhi a que mais apareceu e foi a seguinte: inimigo é alguém que quer me matar. O novo coronavírus quer matar alguém? Não. Então ele não é um inimigo. Inimigo é alguém que nos ataca intencionalmente. Mas porque escutamos que estamos em guerra contra um vírus? Que temos de combater o coronavírus? Que estamos frente a uma batalha?
Se prestarmos atenção perceberemos que escutamos esse tipo de colocação sendo feita desde as ditas "pessoas comuns"; pelos profissionais da saúde; pelos educadores(as); pelos economistas; pelos artistas; pelos filósofos, sociólogos, antropólogos; pelos membros da imprensa, seja rádio, televisão, redes sociais, etc. Já ia me esquecendo de um importante setor da sociedade envolvido nessa "guerra": os representantes das Forças Armadas e das Forças de Segurança dos Estados e municípios. Penso que seria até "normal" escutar esses setores falarem em guerra contra o coronavírus, em batalha contra a Covid 19. Por quê? Porque as Forças Armadas existem para fazer guerra. Essa é sua origem e sua razão de ser. E guerra, pelo que se sabe, na história da humanidade, se faz contra um inimigo. E esse inimigo sempre foi, é, e sempre será outro contingente de Forças Armadas.
Forças Armadas são constituídas de seres humanos. Bingo. Guerras só acontecem entre seres humanos. Tanto isso é um fato - e contra fato não há argumento - que se perguntarmos a um General qual o lugar para ele mostrar o que melhor sabe fazer, a resposta será simples: o campo de batalha. Assim como o melhor lugar para um professor estar é a sala de aula; o jogador de futebol, o campo de futebol; o padeiro a padaria; o padre a paróquia rezando missa, etc. Isso tudo para dizer que não será com esse tipo de compreensão que encontraremos uma forma de lidar com essa pandemia que nos tirou o chão. Não está correto tratar essa pandemia - como qualquer outra - como uma guerra.
O causador dessa pandemia não é um ser humano. O causador dessa pandemia não tem propósito de nos atacar. Não quer nos matar. O coronavírus simplesmente circula pelo planeta e, para fazer isso, entra nas células do corpo humano se replica em milhares que vão infectar outras células. Ele, o vírus, não quer nos matar, ele não quer nada. Ele não é inteligente, não é esperto, nem ardiloso. Ele não tem um propósito. Só quem pode ter propósitos nesse planeta, até prova em contrário, somos nós seres humanos. Conclusão: o coronavírus não é nosso inimigo. Mas porque então usamos esse linguajar frente à pandemia e ao seu causador?
Se observarmos nosso conversar cotidiano, perceberemos que o linguajar utilizado é marcado por expressões de luta, de força, de guerra, de competição, enfim, parece que precisamos afirmar uma forma de viver onde estamos sempre preparados para lutar. Em nossa cultura patriarcal de dominação, de competição, até mesmo quando queremos nos referir a ações meritórias somos reféns desse tipo de expressões. Senão vejamos: falamos de lutar contra a pobreza; contra a violência; contra o analfabetismo; contra a poluição ambiental. Lutar, lutar e lutar.
Qual a boa notícia? Que essa cultura pode ser modificada. Essa cultura de guerra pode ser substituída por uma cultura de aceitação do outro, de respeito mútuo, de aceitação mútua, enfim, uma cultura de amar ao outro sem exigências e sem expectativas. E muito importante: não esperar a próxima pandemia para começar a fazer isso. Claro que nada garante que nesse tipo de sociedade não acontecerão pandemias, mas, pelo menos saberemos lidar com elas de forma menos estúpida, menos negacionista, com menos maniqueísmos: políticos, ideológicos e religiosos.